Carmelita tô com saudade de tu vise?
Ela nasceu no sertão de pernambuco, filha de Ana Maria, índia fulni –ô, (a origem do nome Fulni-ô é muito antiga e significa "povo da beira do rio"). Teve como pai o imigrante português José Braz de Souza, pele alva e cabelos negros, uma autêntica prova viva da miscigenação de raças no Brasil. Filha do sertão onde cabra macho não ajoelha, na infância viu a pexêra sair toda vermelha e acabroeira rasgar as terras secas do sertão.
A faceira Carmelita, nascida em março de 1928, nunca frequentou um banco de escola. Analfabeta e sábia por natureza, deixou uma lição de vida e coragem típica das mulheres valentes. Sua catilena diária era: “Joséeee menino, na terra não tenha medo de ninguém, respeite as leis de Deus e dos homens, encare nos olhos quem for, por mais rico e poderoso que seja o cabra”.
Na veneza brasileira, rasgada pelo Capibaribe que num encontro com o Beberibe cortam a capital pernambucana e juntam-se ao Atlântico Sul, arrebetando os arrecifes, numa demonstração de força e beleza da mãe natureza nas águas do mar. Conheceu José Francisco, negro culto e idealista, homem ciente de seus deveres para com a sua pátria e o seu povo, casal multirracial em toda a sua essência, o negro descendente de africanos, a branca filha de índia com português, algo que na época com certeza gerou olhares estranhos e comentários desabonadores, quis o destino que José Francisco, nascido no fim do século 19, negro e idealista, adepto de Miguel Arraes, líder, político, carismático e governador do estado durante o golpe de 64, o único a não renunciar a mando dos milicos de plantão.
José faleceu numa noite de São João, 24 de junho de 1964 e Carmelita ficou viúva, passou a ser pai e mãe do então menino Joséeeeee, como ela fazia questão de chamar com seu sotaque carregado de cabocla nordestina, cangaceira boa de Guerra…
Pense numa muié brava e temente às coisas de Deus. Frequentava todas as religiões e sempre dizia que todos os caminhos levam ao pai. “Quem não presta não são as religiões, são os homens”. Fui criado por essa mulher, que não sabia o significado das letras, mas tinha visão e o dom das palavras. Em plena ditadura, nos anos de chumbo de cuturnos arbitrários… se saiu com essa: “Joséeeeeeee, nós vamos pra São Paulo”.
Em abril de 1967 lá fomos nós à bordo de um ônibus encarnado e creme da Viação Progresso, com toalete à bordo, coisa chique de doer. Pense no conforto e no fedor depois do primeiro dia de viagem rumo às promessas do sul maravilha. No fim de uma tarde ensolarada de domingo, numa velha balsa, cruzamos o Velho Chico, o rio da integração nacional, o sol vermelho se refletia nas águas do querido e caudaloso São Francisco, carrancas passavam ao longe com saveiros e alvarengas carregadas de peixes e gente.]
Ao cruzarmos o Velho Chico seguimos rumo às promessas da terra da garoa, Carmelita e Eu, dois pernambucanos, uma mala e muitos sonhos… A pauliceia desvairada, a Sampa de pedra, nos deu as boas vindas numa tarde chuvosa de terça-feira. Como boa parte das mulheres nordestinas, Carmelita exerceu as funções de parteira e benzedeira, era uma cabocla arretada com sangue nos olhos e cabelo nas ventas, fruto da miscigenação, uma rica mistura índia europeia, uma Fulni-ô lusitana…
Foi mãe, pai, irmão e amigo , vindo do Aeroporto Kennedy em New York, olhando para o céu e vendo o mar, me lembrei dessa mulher guerreira, que gerou o menino Joséeeeeeee e o guiou pela vida, pelas ruas de uma Recife nos anos 60 e por uma São Paulo da garoa e sonhos.
Com a licença de Caetano, a Sampa onde a força da grana destrói, mas também constrói coisas belas… e foi nessa São Paulo, que demostrou toda sua raça de migrante nordestina, com sua personalidade forte e espirito solidário, onde ajudou a todos que cruzaram seu caminho e lhe estenderam a mão pedindo ajuda, orgulhosa e altiva preferia fazer pelos demais que pedir ajuda... a palavra não, nunca esteve no seu vocabulário, dessa forma viveu 55 anos, temendo a Deus e respeitando as leis dos homens...
Carmelita minha cangaceira véia, tô com saudade de tu vise?.
Beijo mãe, assinado Joséeeeeeeeeeeeeeeeeee.
À todos um cordial Sampraço e uma boa semana óxenteeeeeeee!
Francisco Sampa
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