Conflitos atuais são mais violentos contra mulheres, dizia comitê internacional em 2007 e eleva cada dia
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ANDREA MURTA
da Folha Online
O Dia Internacional da Mulher em 2007 traz um rastro de deterioração na situação das mulheres, especialmente das imersas em conflitos armados. E para quem tenta ajudar, as condições não são melhores: é crescente a ameaça de estupros contra mulheres que trabalham em organizações humanitárias ao redor do mundo. A opinião é da conselheira do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) sobre mulheres em conflitos, Florence Tercier Holst-Roness, 43, que trabalha na direção do organismo internacional, em Genebra, e voltou recentemente do Sudão.
Divulgação |
Holst-Roness, conselheira do CICV sobre mulheres em conflitos |
"Os conflitos cada vez mais envolvem ações armadas contra civis, muitas das quais são direcionadas especificamente para mulheres", afirma Holst-Roness, que cita como exemplo os estupros e situações de gravidez forçada na Bósnia.
Holst-Roness afirma que é crescente também a ameaça de estupros contra mulheres que trabalham com ajuda humanitária ao redor do mundo. Além da violência sexual, as mulheres enfrentam também os riscos inerentes a zonas de conflito. "A pior situação que tive de enfrentar foi em Serra Leoa (África Ocidental), onde nosso comboio foi atacado e duas enfermeiras assassinadas", diz.
Mas também há boas notícias. A chegada de várias mulheres a posições de poder ao redor do mundo, como Nancy Pelosi (nova líder do Congresso americano), Michelle Bachelet (presidente do Chile) e Ellen Johnson-Sirleaf (presidente da Libéria) pode se refletir em melhorias para a situação do sexo feminino. "A melhoria das condições para mulheres é um processo, e essas vitórias políticas são um começo importante", afirma a conselheira.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Folha Online - Como você vê a situação das mulheres no mundo hoje, quando celebramos o Dia Internacional da Mulher?
Florence Tercier Holst-Roness - É difícil avaliar a situação geral das mulheres no mundo, mas sabemos que elas continuam em condição de desvantagem e descriminação em muitas áreas. Ainda assim, progressos importantes foram feitos.
Infelizmente, observando as tendências dos últimos cem anos, as mulheres vêm sofrendo mais e mais em contextos de conflitos armados. A piora se deve à mudança na natureza dos conflitos: cada vez mais, eles envolvem ações armadas contra civis, muitas vezes direcionadas especificamente contra as mulheres. Temos o exemplo chocante da Bósnia para atestar isso. Lá, estupros e situações de gravidez forçada foram usados como ferramentas para a limpeza étnica.
Folha Online - É comum a associação de violência e opressão contra mulheres e países africanos. Em sua opinião, essa associação é um erro? Como está a situação das mulheres na África em comparação com outras partes do mundo?
Holst-Roness - É difícil avaliar se a violência contra mulheres é um problema maior na África do que em outros lugares. A Declaração de Pequim, em 1995, já deixou claro que a violência contra mulheres existe em todas as sociedades, em graus maiores ou menores.
13.fev.2007/AP |
Refugiada sudanesa descansa com filhos após chegar em campo no leste do Chade |
Focando em violência sexual, que é parte do trabalho da CICV, posso dizer que a situação é dramática no Congo e em Burundi. Mas observando a incidência de violência sexual em outros conflitos, como nos Bálcãs, no Timor Leste e na Tchetchênia, fica claro que é errado pensar que essa forma de agressão só acontece na África. E não se pode considerar a violência sexual um "fenômeno cultural" --a cultura é relevante em determinar a resposta apropriada ao problema, mas não em julgar a gravidade ou permissibilidade das violações.
Quanto a comparar a violência na África com a de outras partes do mundo, não posso deixar de pensar no filme da CICV sobre mulheres que fugiam de guerras. Este filme, que conta a história de cinco mulheres refugiadas devido a conflitos na Colômbia, Libéria e Sudão, mostra que as dificuldades das mulheres podem variar dependendo da região. Ainda assim, os fatores que tornam suas vidas particularmente difíceis são os mesmos: risco de violência, separação ou perda de membros da família, educação ou oportunidades de trabalho deficientes, acesso precário a serviços de saúde.
Folha Online - O novo século trouxe novos problemas ou as mulheres enfrentam as mesmas dificuldades em todas as eras?
Holst-Roness - A violência contra mulheres em tempos de guerra, em particular a violência sexual e o estupro, é recorrente desde que surgiu a raça humana. Estupro como recompensa para soldados conquistadores ou estupros em massa por forças armadas tomando cidades não são novos na história das guerras.
Maya Alleruzzo/AP |
Soldado iraquiano vigia mulher e crianças que buscam assistência médica em Qargouli |
A diferença talvez seja a de que, com o relato aberto da mídia em conflitos recentes, a ocorrência generalizada de estupros (assunto antigamente considerado tabu) atrai muito mais atenção.
Além disso, as mulheres estão agora enfrentando novos problemas porque a natureza dos conflitos mudou. A distinção entre civis e combatentes é freqüentemente difusa e muitas vezes os civis são alvos propositais; esses fatores certamente aumentaram o impacto dos conflitos nas mulheres.
Com relação à violência sexual em contextos de conflitos armados, podemos realmente falar de uma nova era, já que a conscientização do problema da violência sexual aumentou e medidas legais importantes foram tomadas a nível internacional.
Os tribunais penais internacionais da Iugoslávia e de Ruanda consideraram o estupro um crime contra a humanidade. O estatuto do Tribunal Penal Internacional também identifica esse ato um crime de guerra e um crime contra a humanidade. Esses atos representam um passo muito importante na luta contra a impunidade.
Folha Online - Como mulher que trabalha em regiões de conflito armado, a sra. já se encontrou em situações de risco?
Holst-Roness - Por sua própria natureza, o trabalho das enviadas envolve riscos. Trabalhamos em conflitos armados. Agentes de trabalho humanitário são às vezes considerados alvos. Eu já estive em situações de risco, mas nenhuma ligada ao meu sexo.
A pior situação que tive de enfrentar foi em Serra Leoa (África Ocidental), onde nosso comboio foi atacado e duas enfermeiras assassinadas. Na época, eu morava com uma delas. Como líder da delegação do CICV, tive que despachar o cadáver em um saco [body bag] e organizar sua repatriação. Enfrentar a morte súbita e violenta de uma das minhas colegas e amigas foi uma experiência devastadora.
Mesmo assim, como mulher, tenho certas vantagens ao trabalhar com violência contra mulheres. Tenho acesso facilitado às mulheres e à suas redes de relações. Ser mulher também facilita na hora de conversar sobre as experiências das vítimas de violência. Por isso, apesar dos riscos, é muito importante que os times de trabalho humanitário tenham tanto homens quanto mulheres em todas as posições --enviados, enfermeiros ou intérpretes.
Folha Online - As conquistas recentes de várias mulheres que alcançaram posições políticas centrais no mundo podem se refletir em mudanças positivas para outras mulheres?
Holst-Roness - Esses feitos constituem uma inspiração para as mulheres, e lhes dá esperança de que as condições do sexo feminino melhorarão. Cito o exemplo da presidente da Libéria, Ellen Johnson-Sirleaf, que venceu as eleições em novembro de 2005 e se tornou a primeira mulher eleita chefe de Estado na África.
16.jan.2007/AP |
Mulher da Libéria celebra um ano de Presidência de Ellen Johnson-Sirleaf |
Essa vitória pode com certeza ser considerada um marco para o continente africano.
Eu estava em uma conferência com mulheres combatentes de grupos armados de oposição africanos em Addis Abeba [capital da Etiópia] quando Sirleaf foi eleita. As mulheres participantes ficaram muito emocionadas e consideraram o resultado um símbolo de uma nova era na África. Para elas, os resultados da eleição liberiana constituem um novo começo, cheio de expectativas.
A melhoria da situação das mulheres deve ser vista como um processo. Mulheres que alcançam posições de poder na política são um começo importante neste processo, que --espero-- será seguido por outras conquistas.
Folha Online - O que deve ser feito para minar as ameaças às mulheres?
Holst-Roness - O dever e a responsabilidade de proteger os civis são primordialmente dos Estados e autoridades. Todo Estado que aderiu a tratados de lei internacional tem o dever de promover e implementar suas regras e, caso crimes ocorram, levar os responsáveis à Justiça. Se as mulheres são obrigadas a carregar o fardo de tantos dos trágicos efeitos dos conflitos armados, não é por causa das falhas nas regras que as protegem, mas sim porque essas regras freqüentemente não são seguidas.
Folha Online - Quais as maiores dificuldades enfrentadas pelo CICV em seu trabalho de treinamento de grupos em conflito sobre leis humanitárias?
Holst-Roness - Nesses treinamentos, destacamos constantemente que as leis humanitárias internacionais prevêem proteção especial para as mulheres, e que a violência sexual constitui uma grave violação. É sempre difícil falar sobre violência sexual e estupro, e mais ainda quando falamos com grupos armados. Uma razão para isso é a natureza pessoal da sexualidade. Além disso, muitas vezes estupros e violência sexual são vistos como subprodutos do conflito --o que torna a situação difícil de ser mudada.
Nós fizemos um estudo sobre os fatores-chave que influenciam o comportamento de grupos armados. O estudo mostrou que o conhecimento das leis humanitárias internacionais não é suficiente para mudar a conduta dos grupos e prevenir as violações. Foram apontados três fatores principais de influência no comportamento das facções: pressão do grupo, obediência à autoridade e a espiral de violência e vingança que traz desligamento moral.
Para contrabalançar esses fatores, não basta o treinamento, mas também ordens rígidas quanto à conduta de forças armadas, além de sanções efetivas no caso de desobediência. Assim, os treinamentos do CICV são necessários, mas não suficientes para prevenir violações, e cabe aos governos e grupos armados integrar as provisões das leis humanitárias internacionais em suas ordens.
Folha Online - O quão diferente deve ser a ação para prevenir violência contra mulheres em situações de conflitos armados e em contextos de crescente violência urbana, como a que observamos no Brasil?
Holst-Roness - Há diferenças, e nossas respostas às necessidades de cada situação podem variar de acordo com as circunstâncias.
A maioria dos conflitos armados recentes acontece em regiões de fronteiras. Estes conflitos internos têm efeitos devastadores nas populações civis. A exposição de mulheres a ataques indiscriminados é particularmente grave nesses conflitos, devido à proximidade com as lutas. As mulheres são freqüentemente assediadas, intimidades e atacadas em suas casas.
Muitas vezes elas são obrigadas a restringir sua liberdade de circulação. Isso limita drasticamente o acesso à água, comida e assistência médica, assim como sua habilidade de sustentar as famílias, trocar informações e buscar apoio familiar e social.
Em ambos os casos, o CICV tenta prevenir a violência disseminando as regras aplicáveis a diferentes situações --Lei Humanitária Internacional em conflitos armados e Direitos Humanos Internacionais em outras situações. No Brasil, assinamos acordos de cooperação com autoridades responsáveis pela segurança em sete Estados. Os acordos prevêem pessoas para integrar normas relevantes de direitos humanos aos procedimentos de policiais.
Folha Online - Em várias partes do mundo --inclusive no Brasil-- um número crescente de famílias é chefiado por uma mulher que não tem o apoio de um parceiro. Na opinião da sra., essa é uma forma de violência? Quais são as conseqüências a longo prazo?
Holst-Roness - Em situações de conflito armado, a ausência do parceiro aumenta a insegurança e os riscos para as mulheres que lideram famílias, assim como para as crianças. Além disso, as mulheres assumem sozinhas a responsabilidade de sustento e cuidado com a família, e a multiplicidade de tarefas pode sobrecarregá-las.
21.jan.2007/Efe |
Somaliana prepara comida em campo de refugiados no Quênia |
Isso afeta diretamente a família. Em nosso centro nutricional em Darfur (Sudão), descobrimos que as deficiências na nutrição das crianças às vezes estão mais ligadas à sobrecarga de suas mães do que à falta de comida.
Na Libéria e em Serra Leoa, a distribuição de mantimentos é focada nos lares mais vulneráveis, a maioria liderados por uma mulher sozinha. A distribuição de comida, sementes e ferramentas, além de iniciativas de microeconomia, ajudam mulheres e meninas a sustentarem suas famílias. Em Serra Leoa, também ajudamos mais de 40 mil mulheres a reconstruírem suas casas.
Na Colômbia, em 2006, trabalhamos com aproximadamente 67 mil pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas. Entre as famílias recebendo assistência, 17% eram lideradas por mulheres, que recebiam fornecimentos adicionais de alimentos devido à sua condição especial.
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