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Marisa Letícia, eterna companheira

Foi num palácio. O Palácio da Alvorada. E era domingo festivo: Dia das Mães, 11 de maio de 2003, ano do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nos jardins, acontecia um churrasco. Diante da corte de fotógrafos, jornalistas e curiosos, Lula ajoelha-se aos pés de sua mulher. A primeira-dama, então, pousa os pés sobre a perna do marido. E ele amarra o cadarço solto do tênis dela.

No dia seguinte, uau, a foto sai estampada na capa dos principais jornais e revistas do país. Mais uma vez, o Brasil inteiro se derretia com a demonstração explícita de afeto do presidente por sua companheira, Marisa Letícia Lula da Silva. A vida de dona Marisa, no entanto, nunca foi de Cinderela. Nem Marisa sonhou ser princesa. Lula sempre a tratou como rainha, fato. Mas isso nada tem a ver com os jardins palacianos do flagra em Brasília. A majestade de dona Marisa Letícia já vinha de muito, muito antes do cargo de primeira-dama.

Casada há 43 anos, Marisa já foi descrita pelo marido como uma “grande mãe italiana”. Ela esteve ao lado de Lula nas greves, nas lutas, na criação do PT, nas viagens das caravanas da cidadania, nas campanhas eleitorais. Mas preferiu ficar longe dos holofotes. “Fora de casa Lula é o centro das atenções. No campo doméstico, Marisa é soberana. Ela é a âncora da família”, contou amiga dos tempos de sindicalismo Miriam Belchior, que foi ex-assessora especial da Presidência. Mulher de opiniões declaradas, sempre foi discreta, tímida e, segundo a amiga, optou por esse papel.

O temperamento forte sempre foi da porta para dentro, onde botava “os pingos nos is”. Em público foi reservada. Gentil, simpática e afetuosa com os amigos, tratava com indiferença gente que julgava interesseira. Também nunca foi de lamentar, mas de resolver os problemas. Em sua primeira entrevista como primeira-dama, à revista Criativa em 2003, respondeu sobre o segredo de seu casamento: “Quando somos jovens imaginamos que o mundo tem que ser cor-de-rosa, só que ele não é. Isso muitas vezes é um choque. O amadurecimento proporciona isso, compreensão das coisas, mais paciência. Nós [Lula e ela] aproveitamos o nosso tempo juntos para ficar bem, felizes”.

Pés no chão de terra batida

Neta de italianos, dona Marisa nasceu num sitio em São Bernardo do Campo, SP, onde havia plantações de batata e milho e criações de galinhas e porcos. A casa de dois quartos onde viveu até os sete anos era de pau-a-pique e chão de terra batida. Não tinha luz elétrica. Nem água encanada, só poço. O colchão onde dormia era de palha. Marisa foi a penúltima filha dentre 12 irmãos. Sua mãe, Regina Rocco Casa, era famosa benzedeira: sabia tirar quebranto, curava menino com bucho virado. O pai hortelão, Antônio João Casa, adorava plantas. Marisa puxou isso dele.

A primeira-dama tinha “mão boa” para lidar com mudas. Quando levou uma jabuticabeira no vaso para dentro do apartamento em São Bernardo, Lula achou que a planta jamais ia vingar. “Eu fiquei, como muitos, todo santo dia resmungando e dizendo que era impossível”, disse o marido num discurso em que fez parábola da planta de Marisa. Lula disse que o Brasil poderia crescer em pleno aperto econômico como a jabuticabeira que, contrariando todas as previsões, sua mulher fez vicejar. “Como ela acreditou mais, irrigou mais, cuidou mais do que eu, o pezinho de jabuticaba dá frutos quatro, cinco vezes por ano, coisa que esse conselho [Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social] pode imitar se quiser”, disse Lula, quando criou órgão do governo em fevereiro de 2003.

Marisa sempre cultivou legumes e verduras. A ponto de não precisar comprá-los no mercado por anos. Quando virou primeira-dama incrementava a horta atrás do Alvorada. Orgulhava-se de dizer que os canteiros estavam com mais variedade. Também povoou o lago do Palácio com peixes e patos quando se mudou para Brasília. A ex-primeira-dama gostava de bichos. Em plena correria da campanha do primeiro mandato de Lula, levou para o apartamento um cabritinho que a mãe rejeitou e o alimentou a mamadeira. Instinto maternal exercido desde criança. Quando ainda era menina de nove anos, em vez de bonecas, Maria foi embalar três sobrinhas do pintor Cândido Portinari. De babá, virou operária aos 13 anos. Embalou, então, bombons Alpino na fábrica de chocolates Dulcora. Teve de parar de estudar na sétima série.

Encontro de fortes

Moça bonita, loura de cachos até a cintura, aos 19 anos, Marisa saiu da casa dos pais para se casar com seu primeiro namorado, Marcos, um motorista de caminhão. Ele carregava areia para construções durante o dia e de noite, saía com o táxi do pai, um Fusca, para ganhar um extra. Queria comprar a casa própria. Seis meses depois do casamento, Marcos foi morto por bandidos num assalto ao táxi. Viúva, a única herança de Marisa foi o filho de quatro meses na barriga. Ela morou no primeiro ano de viuvez com o sogro, depois foi para a casa de sua mãe e trabalhou como inspetora de alunos num colégio público. Dona Marília, a primeira sogra que sempre foi amiga do peito de Marisa, ajudou a nora criar o neto de sangue, Marcos Claudio, e os outros três que a primeira-dama teve com Lula.

Curiosidade do destino: o sogro do primeiro casamento de Marisa, seu Cândido, foi quem primeiro falou de Marisa para Lula. Em 1973, Luiz Inácio tinha o apelido de “Baiano”. Novato no Sindicato dos Metalúrgicos, sofria o luto por sua primeira mulher, Maria de Lourdes, que perdeu, com o filho, na sala de parto havia dois anos. Vez ou outra, Lula fazia uma corrida no táxi Fusquinha de seu Cândido porque a bandeirada era mais barata do que a dos carros de quatro portas. Lula contou, em entrevista à escritora Denise Paraná no livro O filho do Brasil, que seu Cândido sempre que falava da morte do filho e dizia que a nora Marisa era muito bonita. “Foi muita coincidência. O tempo passou. Quando um belo dia estou no sindicato chega essa tal de dona Marisa”, disse Lula.

No encontro entre os dois viúvos não houve suspiros de contos de fada. Marisa foi ao sindicato buscar um carimbo para retirar sua pensão. Lula deixou cair sua carteirinha de identidade de sindicalista para mostrar que também era viúvo. Ele inventou uma firula qualquer na documentação dela para ter desculpa para pedir o telefone de Marisa. Ela nem atendia as ligações. Mas o ex-operário, que venceu a primeira eleição para presidente na quarta tentativa, é insistente. Um dia estacionou o carrinho TL na porta da casa da viúva loura e botou o então namorado de Marisa para correr, dizendo que precisava falar um assunto sério com ela. Lula acabou conquistando a simpatia da mãe de Marisa, Dona Regina, a benzedeira, e depois o coração da ex-primeira-dama. Em sete meses se casaram.

Companheira de todas as horas

Um ano depois do casamento, Lula já era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Naquele tempo, Marisa não entendia nada sobre sindicalismo, greves, ditadura, passeatas, piquetes… Carregava no colo o recém-nascido Fábio Luiz e tinha na barra da saia o primogênito Marcos Cláudio, que Lula adotou como seu. Um dia, cansada dos sumiços de Lula – que saía de casa de madrugada para fazer piquete em porta de fábrica –, Marisa decidiu entrar no curso de política do religioso militante de esquerda Frei Betto. Aos poucos, ela passou a entender a luta dos sindicalistas e acabou por influenciar outras mulheres de metalúrgicos.

Certamente não foi fácil. Lula nunca pôde acompanhar a mulher na maternidade no nascimento dos filhos, por exemplo. Marisa foi mãe e pai dos meninos. Reunião de escola, festinha, finanças da casa, crediário… Tudo era ela quem cuidava. E sem empregada. Joana, considerada uma “irmã de criação” de Marisa, e a ex-sogra, dona Marília, a acudiam em situações especiais.

Em 1980, os militares tomaram o sindicato e a sala da casa de dona Marisa virou a nova sede dos metalúrgicos. E ela também assumiu posto de secretária. Nesse mesmo ano, Lula foi preso. Acusado de incitar uma greve ilegal, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, principal instrumento de repressão do regime militar. “Marisa organizou toda a passeata com as mulheres de metalúrgicos encarcerados. E levou as crianças no meio daquela multidão”, recorda amiga Miriam Belchior, que também participou da manifestação. “Tinha polícia para tudo quanto é lado”, Marisa disse em entrevistas. Ela levava os filhos Marcos, Fábio e Sandro para visitar o pai na cadeia. O caçula, Luiz Cláudio, ainda não tinha nascido.

Sempre junto de Lula, dona Marisa fundou o Partido dos Trabalhadores também em sua sala. “Marisa entendia a missão do Lula. Ela só pegava no pé do marido aos domingos”, disse Luiz Marinho, amigo do casal, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ministro da Previdência no governo Lula. Para ela, domingo era sagrado, era o dia da família. E pouco importava se o almoço familiar acontecesse no apartamento de São Bernardo ou nos salões projetados pelo arquiteto Oscar Niemeyer. A cena dominical do Dia das Mães em que Lula se ajoelhou aos seus pés não teve nada de excepcional como alardeou a imprensa na época. Os pequeninos gestos de carinho de Lula à sua mulher eram rotineiros. Em uma entrevista, Marisa disse: “Em um casamento o amor é muito importante. Mas sonhar juntos é fundamental”. Nos sonhos de dona Marisa, estávamos todos incluídos.

Fonte: Jornalistas Livres

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